Arlecchino
Sento-me nesta poltrona cheia de pó e aliso o vestido que trago amassado da viagem. Olho em frente para o palco onde se desenrola a fita da história que não conheço. Passa um príncipe, devagar, estende-me a mão e um sorriso feito da última pasta de dentes e do mais moderno dentista reluz para mim. Encolho os ombros e fecho os olhos sensíveis e machucados pela luz tão brilhante. Enterro a cara nos joelhos e com a mão expulso este pensamento. Ouço um som e sobressalto-me. Uma música de um filme que odeio roda, e guiada por estranhos impulsos subo as escadas que me levam para a cena. À minha esquerda um pintor desenha um pássaro que quer fugir da gaiola onde está aprisionada. Olha para mim, mas eu finjo que não vejo, mando um beijo e esqueço um episódio assim. Dou voltas por este palma imenso que se transforma numa rua. Descalça, salto pelas pedras da calçada. Só vou pisar as pedras negras, como fazia em criança e vejo que forma um losango. Rio-me, ao pé de mim descansa uma espada. Não brinco de lutas. Não sei praticar esgrima. Não quero matar ninguém. Mas pego nela. E uma força louca entra em mim. Corto o vento e os meus pulsos estalam pelo peso que não costumo transportar. Não sou uma guerreira e no entanto excito-me. Olho em volta vigilante. Alguém passa nas minhas costas e sussurra-me que o mundo acaba amanhã. No momento em que me viro uma presença beija-me o ombro e sinto um toque na minha cintura. Olho em volta perdida. Ouço um diálogo sem sentido para os meus ouvidos, mas lógico ao meu coração. E pressinto um choro louco embargado em álcool. Fujo para o outro lado do palco. Ouço um riso contagiante que me quer tocar na mão. Hesito e escondo-a nas pregas do meu vestido. Passa um palhaço aos saltos e também uma Pierrette que finge que não chora. Vão! Saiam. Não vós quero aqui. Eu só quero fugir para longe onde não me estendam convites que terei de rejeitar. Porque não sei se quero algo assim. Porque quero mais. Porque quero muito menos. Porque não sei o que pretendem. Porque desconfio de sorrisos inúteis e de olhares que riem sem sentido. E de segredos. Deito-me no chão para que a lágrima não transborde e escorra. Ouço uma música que vem até mim. Antes de sucumbir abro os olhos e paro no momento em que aproximas deambulando, receoso de entrar em cena. Reconheço-te. Arlequim sem mácula. Cantas e seduzes-me. Meio fanfarrão, sedutor , pronto para amar. Aproximo-me, porque me enfeitiças mais que o canto das sereias, e eu não sou Ulisses nem tenho uma Penélope à minha espera. Reparo no teu olhar perdido, absorto a procura de novas viagens. Viajante perdido. Conquistador de terrenos férteis ou paisagens por pisar. Ajoelho-me, perto de onde tocas um instrumento musical olhando o horizonte, sem medo, mas receosa de me perder nesse olhar longínquo. Porque sei que procuras algo que não te posso dar. Porque não sei o que é. Aproximo os meus dedos do teu cabelo, devagar, e anelo neles algumas madeixas (que sempre quis tocar). Devagar passo a minha mão para o teu pescoço e coloco-me defronte a ti enquanto trauteias uma canção qualquer. Acaricio as feições da tua cara, meio rudes dessa barba de três dias e engulo em seco. O ar da tua sobrevivência toca-me a pele sem que te percebas, e ouço os sons ritmados do teu coração quando encosto a minha cabeça no teu ombro e colo o meu corpo ao teu. Com o desespero de quem procura oxigénio que se esvai. Com a serenidade de quem sabe que faz as escolhas certas. Com a sensualidade de quem ama. Pego na tua mão e enlaço-a nos meus dedos. Tremes. E noto que os teus olhos ficaram um pouco menos vazios. Sorrio ligeiramente com medo que um esboço maior faça voar o teu eu para longe. Talvez sejas um pierrot cantor apaixonado. Iludido e fragilizado no romantismo que te prendeu algures. Anda cá. Aproximo os meus lábios dos teus, hesitantes. O sopro da tua respiração enlouquece-me. Toco docemente na maciez da tua boca sem me atrever a olhar-te. Segundos. Anos. Segundos. Repentinamente apertas a minha mão e aprofundas o beijo que estava à tua espera.
.......“Shiela, morena Shiela, que vês tu? / Que vês tu, que vês tu nas chamas? / Vejo um rapaz que me ama, vejo um rapaz que me abandona / E um terceiro rapaz, um rapaz das-sombras, e é ele que me magoa”.......
inspiração escrita – “O misterioso Mr. Quinn" de Agatha Cristie
.......“Shiela, morena Shiela, que vês tu? / Que vês tu, que vês tu nas chamas? / Vejo um rapaz que me ama, vejo um rapaz que me abandona / E um terceiro rapaz, um rapaz das-sombras, e é ele que me magoa”.......
inspiração escrita – “O misterioso Mr. Quinn" de Agatha Cristie
Espiral
Dualitate