terça-feira, maio 30, 2006

Arlecchino

Sento-me nesta poltrona cheia de pó e aliso o vestido que trago amassado da viagem. Olho em frente para o palco onde se desenrola a fita da história que não conheço. Passa um príncipe, devagar, estende-me a mão e um sorriso feito da última pasta de dentes e do mais moderno dentista reluz para mim. Encolho os ombros e fecho os olhos sensíveis e machucados pela luz tão brilhante. Enterro a cara nos joelhos e com a mão expulso este pensamento. Ouço um som e sobressalto-me. Uma música de um filme que odeio roda, e guiada por estranhos impulsos subo as escadas que me levam para a cena. À minha esquerda um pintor desenha um pássaro que quer fugir da gaiola onde está aprisionada. Olha para mim, mas eu finjo que não vejo, mando um beijo e esqueço um episódio assim. Dou voltas por este palma imenso que se transforma numa rua. Descalça, salto pelas pedras da calçada. Só vou pisar as pedras negras, como fazia em criança e vejo que forma um losango. Rio-me, ao pé de mim descansa uma espada. Não brinco de lutas. Não sei praticar esgrima. Não quero matar ninguém. Mas pego nela. E uma força louca entra em mim. Corto o vento e os meus pulsos estalam pelo peso que não costumo transportar. Não sou uma guerreira e no entanto excito-me. Olho em volta vigilante. Alguém passa nas minhas costas e sussurra-me que o mundo acaba amanhã. No momento em que me viro uma presença beija-me o ombro e sinto um toque na minha cintura. Olho em volta perdida. Ouço um diálogo sem sentido para os meus ouvidos, mas lógico ao meu coração. E pressinto um choro louco embargado em álcool. Fujo para o outro lado do palco. Ouço um riso contagiante que me quer tocar na mão. Hesito e escondo-a nas pregas do meu vestido. Passa um palhaço aos saltos e também uma Pierrette que finge que não chora. Vão! Saiam. Não vós quero aqui. Eu só quero fugir para longe onde não me estendam convites que terei de rejeitar. Porque não sei se quero algo assim. Porque quero mais. Porque quero muito menos. Porque não sei o que pretendem. Porque desconfio de sorrisos inúteis e de olhares que riem sem sentido. E de segredos. Deito-me no chão para que a lágrima não transborde e escorra. Ouço uma música que vem até mim. Antes de sucumbir abro os olhos e paro no momento em que aproximas deambulando, receoso de entrar em cena. Reconheço-te. Arlequim sem mácula. Cantas e seduzes-me. Meio fanfarrão, sedutor , pronto para amar. Aproximo-me, porque me enfeitiças mais que o canto das sereias, e eu não sou Ulisses nem tenho uma Penélope à minha espera. Reparo no teu olhar perdido, absorto a procura de novas viagens. Viajante perdido. Conquistador de terrenos férteis ou paisagens por pisar. Ajoelho-me, perto de onde tocas um instrumento musical olhando o horizonte, sem medo, mas receosa de me perder nesse olhar longínquo. Porque sei que procuras algo que não te posso dar. Porque não sei o que é. Aproximo os meus dedos do teu cabelo, devagar, e anelo neles algumas madeixas (que sempre quis tocar). Devagar passo a minha mão para o teu pescoço e coloco-me defronte a ti enquanto trauteias uma canção qualquer. Acaricio as feições da tua cara, meio rudes dessa barba de três dias e engulo em seco. O ar da tua sobrevivência toca-me a pele sem que te percebas, e ouço os sons ritmados do teu coração quando encosto a minha cabeça no teu ombro e colo o meu corpo ao teu. Com o desespero de quem procura oxigénio que se esvai. Com a serenidade de quem sabe que faz as escolhas certas. Com a sensualidade de quem ama. Pego na tua mão e enlaço-a nos meus dedos. Tremes. E noto que os teus olhos ficaram um pouco menos vazios. Sorrio ligeiramente com medo que um esboço maior faça voar o teu eu para longe. Talvez sejas um pierrot cantor apaixonado. Iludido e fragilizado no romantismo que te prendeu algures. Anda cá. Aproximo os meus lábios dos teus, hesitantes. O sopro da tua respiração enlouquece-me. Toco docemente na maciez da tua boca sem me atrever a olhar-te. Segundos. Anos. Segundos. Repentinamente apertas a minha mão e aprofundas o beijo que estava à tua espera.

.......“Shiela, morena Shiela, que vês tu? / Que vês tu, que vês tu nas chamas? / Vejo um rapaz que me ama, vejo um rapaz que me abandona / E um terceiro rapaz, um rapaz das-sombras, e é ele que me magoa”.......

inspiração escrita – “O misterioso Mr. Quinn" de Agatha Cristie
Espiral
Dualitate

quarta-feira, maio 24, 2006

Renuntiare

Olhou-te pela derradeira vez no calvário de uma melodia triste. Um vento agreste passa e agita as cartas que voam, enfeitiçadas, depois de um jogo de azar que ganhou. Lágrimas desperdiçadas conquistadas à lua, combinam com sorrisos volúveis deitados na cama que acordaram sozinhos. É o retrato manchado da figura imóvel que corre ao teu encontro ou que foge de ti. Uma visão fixa, sem sentimento, lacera as veias de quem já escolheu caminhar sozinha. Uma fuga que cavalga porque não pode andar. Um lampejo de cólera ameaçada por uma chuva de docilidade que carrega um mundo de corais e de brilhantes que ficaram por mostrar. Um vestido que estaca, uma perna que cede, um corpo que resvala para sucumbir antes de morrer para ti . Uns cabelos relampejam, selvagens, enquanto uma mão ensanguentada arranca um coração do fundo das trevas e guarda-o junto ao peito. Um grito procura a borda do chafariz para onde salta um corpo que precisa de respirar o ar do céu. Um corpo que se expande para o alto. Desconhecidos que se viram, embasbacados. O milagre da água que não corre ali serpenteia pela fonte que secou. Desperdiça um dom queimando palavras opacas e vazias. Riu histericamente até ficar louca. Cobriu-se de ridículo. Dá um murro no ar enquanto salta e cai, cega. Fica ferida. Pulsa uma alma transparente que nem uma só palavra dita num murmúrio cruel pode escravizar. Nem um som é jugo. Por isso olha-te. Ferida, amarrada ao inferno para onde se atirou...e mesmo assim....deposita flores de plástico sobre a tua campa. Sobre a tua campa vazia.

Espiral

Dualitate

(Ao som de Donna Maria - aqui tão perto de ti)

domingo, maio 21, 2006

Espião II

Colocas melodias que me interessam. Olhas o infinito que se expande. Olhos de criança, receosos, atentos, exploradores. Doces, como caramelo que escorre. Perguntam ao mundo. Mas o mundo não responde. Eu sento-me e baixo a cabeça que ferve. Não posso estar aqui. Escondo-me nas rochas. Tapo os ouvidos. Não posso ouvir. Sou insensível e tenho sede. Uma sede enorme que cresce quando te vê...todos os dias. Mas os potes de água partiram-se e não encontro poços no deserto...os oásis são apenas miragens para onde corro...mas essa água deixa-me pior. Odeio enganar-me. Um grito de ave é chaga em mim. Lacinante. Mas eu não me mostro. Nunca aprendi a linguagem que transcende o restolhar das penas. E volto, volto sempre aqui. Escrevo para cortar o embaraço. Assim só eu. Protejo-me, mostrando-me. Mas tu não sabes. Não sabes que este meu lado pode ser teu. Risos com risos. Pincel com pincel. Ás de copas nesse baralho incompleto. (Sou tão pouco original.) Se olhas, devido a um tropeção do destino, os meus olhos fecham-se, sérios, e caio. Falso alarme. Já passaste e nem paraste, quanto mais hesitar. E eu talvez precise de passar a linha do horizonte, ficar cega e deixar de ouvir canções.

Espiral

Dualitate

segunda-feira, maio 08, 2006

Inderrotável

Olhas em frente na rua cinzenta, presa pelo nevoeiro que encerra sonhos e esperanças. Calcas um cigarro meio fumado e pegas numa pedra que rolou até ti. Não a olhas. Sabes que as pedras chegam porque sim. Só ficam as que nós prendem os olhos. Ou então aquelas que apanhamos quando estamos desatentos. Franzes as sobrancelhas, cerras os olhos e desvias o olhar, desconfiando. Ninguém sabe porquê. Apenas que esse ar, meio selvagem, meio agreste, pode desmistificar-se e parar num sorriso que iluminam um olhar. O teu. Acompanha-te uma melodia cantada por uma voz meio demente. Eu chamaria “intensa”, mas eu sou tão louca como tu. São duas da manhã. Ou três, ou quatro. E talvez chegue até ti, devagarinho, ou de rajada, doce inspiração. Escreves e depois rasgas o papel. A memória é mais forte e tu sabes o que queres. Mas mais tarde armazenas palavras em cofres que conferem-lhe a magia da imortalidade. Andas. Enfrentas o nevoeiro como cavalo que se esqueceu do D. Sebastião. A trote, a passo, a galope...mas sem nunca perder o rumo. Talvez acendas outro cigarro. Talvez pares num bar com luzes pirosas a anunciar e bebas uma imperial. Talvez um dia partas deste mundo, mas não será hoje. Hoje desembainhas uma espada e lutas. Hoje bebes um café no teu bar. Amanhã apanharás uma buba que te fará adormecer no carro. E de seguida será um rei que ficará satisfeito por acariciar a pelagem de uma gata que se enrosque no seu colo. Talvez jogues uma partida de cartas com três estranhos que chocaram contigo durante a jornada. Sueca, daquelas que tenho saudades de jogar contigo. Ou converses infinitamente até as palavras se tornarem soltas e os silêncios ganharem significado. Segues, sem dúvida ausente de fraquezas inúteis. As tuas fragilidades são peças do puzzle a quem chamas “eu” e que estaria inacabado sem elas. Olhas o horizonte, aspirando a ter o céu e tendo a perfeita consciência que muitas vezes só pisamos o Inferno. Mas não te preocupes. De acordo com as tuas preferências terás sempre aqui um amanhecer ou um anoitecer. E um antes. E um depois. E um sempre.

Para o André (Cavalo Branco), o meu melhor amigo, com todo o carinho que posso lhe dar (que é infinito) e com todos os desejos de felicidade e de Parabéns. Obrigada por tudo, tens definitivamente uma grande parte da minha alma e mereces sem dúvida todas as palavras que te possa dedicar. Aproveita todas as 23 horas que faltam desde dia que é só teu vivendo como só tu sabes viver. À tua maneira.

Um abraço fechado e um beijo doce, doce da

Espiral (Sónia)
Dualitate

segunda-feira, maio 01, 2006

Teatro

Manda-me improvisar. Mil olhos esperam, sem dar muita atenção. Eu tremo. Não consigo deixar-me ir e esquecer o mundo. Alguns papeis impacientes remexem-se. Respiro fundo, a minha voz saí, nasalada. Engulo em seco. Não começo bem. Hesito. Recomeço. Falo de teclas por onde saltito. E de teres passado ao lado dos meus sonhos. Aponto o dedo para alguém, que acuso de estar distraído. Não para ti. Sirvo, em bandeja de prata, a minha busca e o meu fôlego. Rodo em mim mesma, os meus cabelos desvanecem-se enquanto a minha saia flutua. Ensaio posições de rainha indignada, de bailarina elevada, de mãe desmaiada. Floresço e volto a ser apenas isso. Um gesto lento. Sou de novo mulher. Absorvo as palavras e cega, discorro sobre o amor que une a paixão. Tu fitas-me sem atenção. E eu, no meio das luzes baças esqueço-me de quem és. O meu sol. E sento-me numa cadeira, implorando por um discurso. Sigo toda a plateia com os braços. Abarco todo o cerco hipnotizado pelas mentiras que escondem verdades. Um sussurro final imita uma lágrima que ficou, pendente, por cair. Acabo. Silêncio. Voltei aqui. Baralho os pés e dou passos desajeitados. Estou vermelha. Sinto-o. Um segundo que dura uma vida acaba e simplesmente dizem-me “Fica”. Não te olho. Mas sei que só quero ouvir-te dizer o mesmo.
Espiral
Dualitate

Pingos púrpura

Estou demasiado despedaçado para pegar em mim ao colo.É uma besta, a sensação dos pingos de chuva a tocarem o chão.A minha ausência, só pode aguardar a esperança que bebas a chuva antes da sua trovoada.Uma esperança lutadora.Uma chuva dissolvente.Pela tua própria boca.Pela tua própria púrpura.
Cavalo Branco
Dualitate

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