quinta-feira, setembro 22, 2005

Peregrino

Do alto do precipício olho as estepes longínquas onde se agitam cavalos selvagens. Um pôr de sol movimenta-se ao fundo e uma planície escurece rapidamente sob os meus olhos. Um receio sobe de mansinho como um formigueiro que começa nos meus pés. As pedras da rocha fragmentam-se e rolam pelo despenhadeiro. Recuo três ou quatro passos. Um sabor a medo perpetua-se na minha boca. E não saí. Tenho sempre medo de cair. Mesmo que no horizonte vislumbre uma bela paisagem. Suspiro de alivio, sinto-me em segurança. Mas um mundo dá sempre uma reviravolta quando nos julgamos protegidos. Sinto-me impelida para o abismo. Na altura ainda não sabia que estava a ser empurrada. Caí. Decepcionei-me. Não havia planta a crescer algures, onde me pudesse agarrar. Acabo aqui no fundo, e ferida. Finalmente atingi a terra. Os segundos que duraram a queda pareceram-me eternos. Já aqui cheguei com chagas a cicatrizar. Levanto-me. O meu coração bate devagar. Acizentam-se os olhos de clara cegueira. Os meus lábios apertados recusam-se a soltar murmúrios. O eco na minha cabeça encontra-a vazia. Estou maltrapilha, os farrapos da minha alma não chegam para me trajar. Uma aragem chega de mansinho para me elevar, mas eu estou colada à terra. Ainda tenho sede. Não procuro sinais mas eles encontram-me. O tempo muda. Brisa leve, um vento quente que sabe bem. No meio salpicos de chuva que vão depressa embora. Segue uma ventania, mas ainda não é hora de despertar. Um furacão vem e solta-se em todos os lugares. Um estalido confunde-se na natureza que irrompe na pradaria. Agita-se um sangue em rebuliço. Permito-me andar. Tacteio o caminho que se encobre nas ervas . O sol ilumina perfis de animais que cavalgam perto. Distraí-me, sigo a linha circular onde passeiam. Onde vai dar? Vejo um viajante.. Dá-me as boas vindas, uma onda transforma-se num aceno tímido. Talvez eu sorria e acene em volta. Mas neste momento apetece-me correr e sentir o vento a levar-me. E passo sem parar, não há alento que me prenda. Um ciclo já foi fechado.

Espiral

Dualitate

4 Comments:

Blogger Rui said...

Um texto triste...e muito bonito. ...entretanto um segredo, só aqui entre nós:
um dia, quando menos esperar, a personagem do teu conto voltará a encontrar outra paisagem, e há-de ser ainda mais bela que esta. É absolutamente inevitável. Mas antes, vai ter que resolver um problema, que é a companhia dos dois piores companheiros de viagem de sempre: o medo e a desilusão. Fantasmas angustiados e cínicos que são (para além de excelentes designers de precipícios), estarão sempre a censurar-lhe os planos de viagem, a queixar-se das condições, e especialmente, das expectativas que ela alberga em relação ao destino que pretende. Mas ela, moça de fibra que é :), vai obviamente fazer o que lhe compete, que é dar um esplendoroso par de estalos a cada um e deixá-los estendidos no meio da estrada. E obviamente acabará por chegar ao seu destino.
Deixo o resto da continuação por tua conta. Tenho a certeza que vai ser um final feliz, porque a tua personagem bem o merece :) Fortes beijinhos.

sexta-feira, setembro 23, 2005 6:36:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Fascinante ... "O eco na minha cabeça encontra-a vazia. Estou maltrapilha, os farrapos da minha alma não chegam para me trajar." Porque os teus textos me trasncendem ... e só se escrevesse como tu ... conseguiria descrever o que acontece quando os leio ... fenomenal =P

parabens (aos dois, o texto anterior também estava ... brilhante)
continuem ...

bjz =)

sábado, setembro 24, 2005 1:57:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

"Mas um mundo dá sempre uma reviravolta quando nos julgamos protegidos." é preciso dizer algo mais?muito bom!

bj.

sábado, setembro 24, 2005 5:08:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

quem te lê estará contigo porque é impossível não partilhar esse lugar,cada alguém à sua maneira mas não indiferente porque não pode escapar...
obrigada espiral*

sábado, setembro 24, 2005 2:39:00 da tarde  

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