quarta-feira, outubro 26, 2005

Batota

Joguei às cartas com a Esperança e apostei tudo o que tinha na minha perdição. Ganhei, e ela disse “Está bem, eu vou-me embora”. E afastou-se, pequena luz brilhando, bem devagarinho e a contragosto. A Esperança é teimosa e detesta abandonar-me. Mas é também leal, e sabe que se apostamos todos os trunfos e eles continuam na nossa mão, como se nunca tivessem sido postos à prova, é porque ela deixou de representar o seu significado original. E deixamos de crer. Aperto nas minhas mãos as cartas que me levaram a vencer este jogo e sei que detesto estar certa. Jogo para trás o meu corpo indolente e caio nas poças da chuva. Sinto o frio a entrar por entre o meu vestido de lã roxa e a molhar-me a pele. Os meus cabelos encharcados pesam e fazem com que a minha cabeça se afunde mais. Mas não tem importância. Passam pessoas nos seus impermeáveis, armadas de guarda-chuvas, evitando as poças de água. Para não molhar os pés. É difícil proteger o nosso lado mais fraco. As dificuldades tem mais acesso a ele que nós. Por isso fugimos, protegemos os nossos lados fortes . Pensamos que somos inteligentes. Afastamos a vista dos outros guiando-os para a nossa armadura que nós faz sentir superiores e eles fingem que não vêem as nossas fraquezas. Ou não vêem mesmo. Só quem já chorou na solidão ouve os ecos dos gemidos. Eu sinto-os. Mas isso não conforta a minha dor. Sinto os pés doridos, estão feridos, só aqui, onde eles não aguentam o peso do mundo, posso descansar. Minutos, segundos, onde permito que se peguem a mim imagens que só li em livros e vi em filmes. Mas a vida não é como os filmes e os livros. A Esperança tinha-me abandonado. Engano-me. Eu abandonei a Esperança e escorracei-a ganhando um jogo que eu sabia perdido. Mas o desespero leva-nos a fazer batota só para nós dizer-mos que estamos certos, para gritar-mos que não merecemos, para sussurrar o que não temos, para nos ferir-nos, chagas voluntariamente feitas, que podemos controlar, para mostrar que temos o direito de nos julgarmos livres de qualquer felicidade . Sim, nós julgamos que não queremos. Levanto-me, devagarinho agora que estou sozinha, a água cai pelas minhas costas e cai-me do peito uma carta no colo. Um ás de copas. Arrasto a minha mão da água para a apanhar e ela tropeça num obstáculo. Outra carta que bóia na água. Viro-a para ver a figura. Sorrio e uma luz aparece mal manifesto uma emoção. A Esperança sorri e mostra-me mais uma carta. Um ás de espadas. Há sempre num jogo de cartas aquelas que fazem a diferença.
Obrigada dois de espadas. =)

Espiral

Dualitate

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

muito bom!Lembra-te então, sempre que precisares dele...do às de espadas.Pelo menos é do mesmo naipe, do que o dois... =).gostei muito!

"A Esperança é teimosa e detesta abandonar-me" - brilhante...

CB

quarta-feira, outubro 26, 2005 7:04:00 da tarde  
Blogger catavento said...

essa chuva que não deixa de nos tocar e atravessar, é desconfortável, sim. mas talvez seja por isso que te tenham concedido este jogo,esse encontro com a Esperança, talvez por isso tenhas direito a uma última carta.

bj*

ps-sou como tu, não consigo deixar de molhar os pés =)

sábado, outubro 29, 2005 11:57:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

..de ke lado joga a esperança afinal?
nao é ela a fadinha ruiva sentada no teu ombro? sussurrando sem ke saibas.. as cartas a mover..
talx ela nunca vá. tb nunca ngm lhe pediu pa fikar.

*beso

terça-feira, novembro 01, 2005 10:09:00 da tarde  

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