Ensinam-me
Nem sobraram palavras. Esqueço-me do meu medo de voar. Lembro-me porque gosto de andar em cemitérios. Aqui não magoo ninguém. Aqui não me culpam. Aqui não me escondo. Apetece-me saltar de campa em campa sabendo que não incomodo o sono de ninguém. Deitar-me na relva olhando o céu de uma manhã eterna. Adoro o cheiro da manhã. Da relva. Até do cheiro das velas nos cemitérios. Se me chego para o pé do muro vejo a cidade. Ensinaram-me a andar por estes caminhos largos, a admirar as estátuas, a responder com graça. Ensinaram-me que o amor tem muitas formas. Todas verdadeiramente verdadeiras. São poucas as que são falsas. Ensinaram-me a sofrer por males antigos e por novas esperanças. Ensinaram-me a viver fantasias sozinhas ou compartilhadas. Ensinaram-me a ler nos olhos deles. Ensinaram-me um pouco dos seus romantismos. Ensinaram-me que os sonhos podem ser vividos diariamente. Mesmo que afinal não seja o mundo ideal de ninguém. Ensinaram-me a cor das músicas. Ensinaram-me o poder das conversas que duram infinitos. Ainda hoje me ensinam. Ensinaram-me a tristeza. A raiva. O desespero. Ensinamo-nos a ser melhores…ou piores. A viver sem sequer pensar em apenas sobreviver. Importante. Ensinaram-me a chorar. Ensinaram-me que sou frágil. Ensinaram-me o pior de mim. Ensinaram-me a descobrir o melhor. Ensinaram-me o que é a crueldade. Ensinaram-me que podem ser cruéis. E doces. Mostraram-me o que não quero para entender o que quero. Agora sou assim. Ainda me falta tanto. Perdi mais certezas do que ganhei. Estou mais grata. Perdi mais batalhas. Feri-me em mais guerras. Acho que ainda vou piorar antes de melhorar. Se melhorar. Ensinaram-me que posso ser criança quando quiser. Que sei sorrir. Ensinaram-me o que é a generosidade. Ensinaram-me a saber perdoar. Ensinaram-me a ser tonta, a perder-me em histórias de encantar. Ensinaram-me a rir. Não me ensinaram a desistir. Ainda não. Não me ensinaram como se evita o sofrimento. Só me ensinam que nos vidros de um carro há muita perseverança, quando não há em mais lado nenhum. Ensinaram-me que posso ser ignorada, diminuída, desprezada. Ensinaram-me que mesmo assim não serei ignorada. Ensinaram-me a tentar. E a tentar. E a arriscar. Ensinaram-me o fácil que é amar quem merece ser amado. Esqueceram-se, de propósito, tenho a certeza, de me ensinar o contrário. Ensinaram-me o poder das mãos. Ensinaram-me o significado de um abraço. Ensinaram-me a intimidade de um beijo. Ensinaram-me amizades desinteressadas e interessadas. Ensinaram-me private jokes. Ensinaram-me a beber. A beber demais. Ensinaram-me o desejo. A desejar. Ensinaram-me a enfrentar os silêncios. A respeita-los. Ensinaram-me a escrever, não ensinando. Ensinaram-me a ripostar. A ser impertinente. Ensinaram-me um pouco deles mesmos. Se calhar ensinaram demasiado. Ensinaram-me a fazer bluff. Ensinaram-me a ter pena. Ensinaram-me a mostrar ou esconder a minha ingenuidade. Mostraram-me a generosidade. A insensibilidade. Mostraram-me quem eu sou. Que para mim não existem falsas vitórias. Que vou sempre questionar e complicar. Que vou sempre sofrer. Que sou teimosa e que não quero mudar. Só melhorar. Que posso ser rude e bruta, especialmente com que amo. Ensinam-me que posso mudar isso. Mostraram-me que também tenho momentos de gentileza. E mostrara-me que eu sou mais eu quando me esqueço de tentar ser. Ensinaram-me que sou uma senhora. Uma mulher. Uma amiga. Uma companheira. Todos os papéis aos mesmo tempo, ou então não. Não sobram muitas palavras. Esqueci-me de quase todas. Tanto que posso ainda dizer. Ensinaram-me a levantar quando penso que ainda vou cair mais vezes. E que isso não importa. A porta do cemitério permanece aberta.
A eles.
Dualitate
Espiral
2 Comments:
Sem dúvida que te ensinaram a escrever.
é enorme o que retiramos das estatuas nas nossas ruas.
=) *m
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